quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

O passaporte

Ele simplesmente chegou e me contou a verdade, toda a verdade. Eu, cético como era, apenas neguei tudo, obviamente.

"Então beba esse chá", ele insistiu me empurrando uma xícara com um líquido meio cinzento, "ele fará com que não se esqueça dessa vida quando for para uma outra". Eu não bebia pela desconfiança, já que o chá tinha um agradável cheiro, parecia baunilha. Então pensei no que tinha a perder, que não era quase nada visto a situação que eu me encontrava: tinha acordado com a casa em chamas dois dias antes, e por não ter onde ficar me hospedei num hotel na saída da cidade. Não conhecia ninguém que pudesse me ajudar naquela cidade, de família tinha apenas meus pais que moravam no interior. Conheci o homem na rodoviária, enquanto esperava pelo ônibus, e agora fitava-o indeciso entre tomar e não tomar aquilo.

A história era bem estranha, mas tudo que ele dissera era bem interessante. Eu, estudante aplicado das filosofias de buteco, me deparara com uma questão, que apesar de desgastada, nunca tinha sido olhada por tal ponto de vista, não que eu soubesse.

Ele chegou sorrateiro e com um sorriso no canto da boca. Sua barba por fazer, seus óculos escuros e sua jaqueta desgastada davam a impressão de que ele tivera saído do filme 'Motoqueiros selvagens', e a primeira coisa que me disse foi 'Tem fogo?'.

Rapidamente tirei o isqueiro do bolso e o emprestei, tinha parado de fumar há dois meses mas ainda não perdera o hábito de carregar-lo sempre comigo. Ele acendeu e soltou uma baforada no meu rosto, quando percebeu minha cara de desgosto apenas virou-se pro outro lado.

"Você não é muito de falar, né estranho?!", virou-se pra mim com aquele mesmo sorriso, eu retruquei, meio indignado: "É louco?! Como assim!?", ele apenas estendeu a mão com o isqueiro e me devolveu. Continuou a fumar olhando para algum ponto bem distante no teto da rodoviária.
Sem voltar o olhar disse: "Qual foi a ultima vez que morreu?" - "Sim, você é louco.".

Aí ele começou sua história, que eu, apesar de achar absurda, ouvi sem interrompê-lo um instante sequer. Ele falava sobre sonhos, sonhos em que a gente morre. Nesses sonhos, disse ele, temos os últimos resquícios de nossa vida passada, e quando acordamos, ou quando 'terminamos de morrer' na outra vida, passamos para esse universo e ganhamos de presente uma vida inteira a qual acreditamos ter vivido, mas na verdade ela foi criada naquele exato momento, tudo para que o universo continue tranquilamente seu ritmo.

Nesse instante me lembrei que, no dia eu que eu acordei com a casa em chamas, eu tinha sonhado exatamente com isso: eu era um terrorista que explodia as bombas em meu próprio peito em um lugar parecidíssimo com o oriente médio. Percebi que eu estava com a respiração presa e dei um suspiro lento.

"Então um dia eu descobri um chá, uma receita encontrada em velhos livros de magia, que me protegia contra o esquecimento, que segundo o próprio livro era uma dádiva para que não enlouquecêssemos vivendo na eternidade. Esse liquido era portanto o tão sonhado elixir da vida, da eternidade, e poderia nascer e morrer quantas vezes quisesse, poderia ser uma infinidade de pessoas diferentes e em épocas diferentes. Ele dizia já ter tido vinte vidas mais ou menos.

Eu, claro, pensei: "Ele é um louco.", mas fica a curiosidade. Ele parecia ter muita segurança do que falava, ele era realmente seguro. Percebia-se que era uma pessoa experiente, era inteligente e tinha boa conversa, alguem realmente curioso.

Eu titubeei com a pequena xícara na mão que ele me dera, nela ele derramou o chá que trazia em uma garrafinha térmica a tiracolo. Enquanto eu fitava meu reflexo no chá ele me contava o porquê de eu ser o escolhido para saber daquela verdade.
Segundo ele, nos encontramos na sua primeira vida - a que ele se lembrava como sendo a primeira - e fomos grandes amigos, eu morrera assassinado e, depois de ter descoberto aquele elixir, ele me procurara por anos. É que por mais que nascêssemos de novo, nossas aparências quase não mudavam. Então ele tinha visto minha foto no jornal, descobrira que eu era um cronista, mas quando foi me procurar no endereço que lhe deram no jornal, achou apenas uma casa queimada, mas pra sua sorte seus instintos estavam corretos e em 36 horas de espera na rodoviária eu apareci.

Bebi. Era até gostoso. Senti um estranho formigamento e uma sensação de que eu tinha ficado mais leve, mas passou rapidamente. Ele levantou-se, esperando que eu levantasse também com os braços semi-abertos, no qual ele envolveu-me num abraço.

Conversamos muito até a hora de meu ônibus chegar, ele me contou de suas experiências passadas, mas ficava quase sempre contando sobre nossa amizade e sobre o que fazia em sua atual vida. Eu também lhe contei o que eu fazia, contei que além de escrever para um jornal eu estava escrevendo um livro de crônicas e que até minha casa pegar fogo, eu estava juntando dinheiro pra comprar uma moto.

Sorrindo, nos despedimos quando finalmente chegou a hora de eu ir pra casa. Prometemos que nos veríamos de novo, e então me virei pra ir embora. Ruminei aquilo por todo o caminho, e quando cheguei no sítio onde moravam meus pais, eu passava dias sentado na varanda tentando me concentrar pra escrever algo, mas apenas aquela historia em vinha na cabeça.

Então sorri. Tinha entendido tudo, agora tudo estava bem claro. Passei os meses seguintes em claro escrevendo sem parar, toda a historia, tudo que me lembrava e tudo que tinha sido contado, meus lápis corria incessante até que o ultimo ponto fora colocado.

Escrevi uma carta simples de despedida, sem nada explicar, apenas com o desejo de que meu livro fosse publicado, enterrei na beira da estrada algumas coisas que eu tinha mais apego e um pouco de dinheiro, depois eu me tranquei no quarto e dei dois tiros na cabeça.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

O pintor

Vocês são um bando de quadrados! Não conseguem compreender que cada pessoa nasce com uma coisa diferente no sangue? Eu nasci assim! 'Eu nasci com o pé na estrada e a cabeça na lua!'. Por mais que tentem, não conseguem fazer nada mais que adiar o inevitável, atrasar o ritmo das coisas e criar mais expectativa, podem prender, enjaular. Matar nunca.

Há mais ou menos uns quatro meses eu descobri o que era viver sem sonhar, eu vivia sem sonhar, descobri que o ser humano que não sonha está morto, ou no máximo compõe um cenário da natureza, de uma pintura, emprestando seu corpo e vagando sua mente por coisas banais.
Gerações e mais gerações que nascem e morrem pelo mesmo objetivo, lutando pelas mesmas coisas que seus ancestrais, com medo de subir pela escada e pegar o precioso cacho de bananas. São pessoas mortas.

Enquanto eu vagar, por todo o tempo que for necessário, pelas ruas dessa empoeirada cidade, saibam que minha cabeça há muito tempo que nao está aqui, saibam que eu estou tão longe quanto podem imaginar, e quando menos esperarem nao mais estarei. Quando menos esperarem eu deixarei de ser apenas parte do cenário e me tornarei o artista.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Em nome do pai

Por certo deus se enganara ao entregar aquela tarefa a ele: nunca mataria seu próprio filho, e por ser uma entidade superior e onisciente deveria saber daquilo. Mas tinha sido aquilo mesmo. Em sonhos, e de muitas outras formas, o anjo tinha lhe enviado a mensagem e a vontade do todo poderoso a fim de testar a fé daquela miserável alma servidora.

A princípio pensou em tentar se esconder, enganá-lo de alguma forma, maquinou, e depois sentiu vergonha, até porque deus tinha visto tudo aquilo em seus pensamentos. Então orou e pediu perdão. Era tudo tão difícil, sua criança tinha então nove anos, menino inteligente, cabelos castanhos e parecia ter futuro bom lidando com os números. A mãe, que morrera no parto, lhe deixou de herança seus olhos verdes e inocentes, além de alguns milhões. Ela era de uma família abastada e o futuro do garoto estava garantido se não fosse aquele pequeno porém.

O pai sempre foi um grande devoto, assim como a mãe, e ambos também instruíram o menino sempre pelo caminho da fé. Acreditavam na bondade e na generosidade do deus celeste, mas agora o pai começava a ter medo, começava a vacilar em sua fé. Lembrou-se então da história de Abraão, ficou por alguns momentos mais tranquilo, mas logo depois começou a tremer novamente. O anjo tinha falado que o sacrifício deveria ocorrer logo, dentro de dois dias... já tinha se passado 36 horas desde então. As mãos suavam, e seu pensamento era sobre como seria, o que usaria para matar o garoto. Não iria mais vacilar em sua fé. Não. Deus deveria ter reservado um futuro diferente para aquela criança, e para ele. Não vacilaria.

Arrumou tudo que precisava, pôs a criança para dormir pela ultima vez e, ao nascer do sol, o levou para uma estrada na saída da cidade, parou o carro e explicou tudo ao garoto.

Entre soluços e gemidos, o garoto nada fazia, parecia se conformar com tudo, e deu mais segurança ao seu algoz. Foram para longe da estrada, pelo mato. O coração dos dois batia acelerado, mas a criança tinha tido uma educação religiosa exemplar, e sabia que se deus assim queria, assim teria de ser. Subiu com o pai em uma rocha, enquanto ele desembainhava a faca.

O garoto se deitou. A lamina brilhava refletindo o sol da manhã enquanto ia de encontro a fina garganta. Fez-se o primeiro sulco e por ele escorreu a primeira gota de sangue. A medida que a faca afundava aumentava o terror no rosto da criança, que com os olhos esbugalhados levou a mão no braço do pai como se tentasse reagir e impedir aquele infanticídio. Mas era tarde, e suas mãos frágeis e trêmulas não tiveram força para tal, a boca fazia algum som inaudível, enquanto o sangue no pescoço borbulhava e seu corpo pequeno e frágil tinha um súbito e passageiro ataque epilético.

Depois de toda aquela cena o pai ainda contemplou o corpo inerte do filho por alguns instantes antes de, com lágrimas nos olhos, cavar a sepultura do menino. Enterrou o pequeno e saiu sem olhar para trás. O percurso até a casa foi um dos mais longos de toda sua vida.

Duas semanas depois a manchete de todos os jornais era um brutal assassinato, e mostrava a foto do homem que tinha matado o filho a sangue frio para receber a herança milionária de sua esposa.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

O Enforcado

O baque surdo me acorda
e a corda suja balança
e a criança discorda
da minha falta de esperança

E o que eu vejo são olhares
que muito estão distantes
e que ainda são milhares
a me olhar a todo instante

Maré

É como se esse turbilhão de pensamentos jamais fosse passar. Às vezes divago sem saber em que estou esperando, incauto e desprotegido, não terei mais minha sanidade de volta?

É como aquela criança que solta a mão dos pais e se perde na feira, assim somos nós que vivemos à espera de sabe-se lá o que, agarrados com unhas e dentes do restante de objetividade que resta, no materialismo e em tudo que seja palpável e presente. Ainda assim consumimos tempo de menos com o trabalho, fazendo compras e assistindo a tv, pois esse nosso inesgotável ópio é o que nos resta de esperança.

Talvez seja a melhor alternativa investir em uma carreira profissional, de preferencia computação. Talvez seja mais interessante eu começar a pensar mais no modelo de carro, sonhar com meu Porshe e com uma mansão. Talvez eu deva me esforçar pra sorrir e segurar minhas gargalhadas. Ou talvez eu apenas deva acordar pra realidade.