"Então beba esse chá", ele insistiu me empurrando uma xícara com um líquido meio cinzento, "ele fará com que não se esqueça dessa vida quando for para uma outra". Eu não bebia pela desconfiança, já que o chá tinha um agradável cheiro, parecia baunilha. Então pensei no que tinha a perder, que não era quase nada visto a situação que eu me encontrava: tinha acordado com a casa em chamas dois dias antes, e por não ter onde ficar me hospedei num hotel na saída da cidade. Não conhecia ninguém que pudesse me ajudar naquela cidade, de família tinha apenas meus pais que moravam no interior. Conheci o homem na rodoviária, enquanto esperava pelo ônibus, e agora fitava-o indeciso entre tomar e não tomar aquilo.
A história era bem estranha, mas tudo que ele dissera era bem interessante. Eu, estudante aplicado das filosofias de buteco, me deparara com uma questão, que apesar de desgastada, nunca tinha sido olhada por tal ponto de vista, não que eu soubesse.
Ele chegou sorrateiro e com um sorriso no canto da boca. Sua barba por fazer, seus óculos escuros e sua jaqueta desgastada davam a impressão de que ele tivera saído do filme 'Motoqueiros selvagens', e a primeira coisa que me disse foi 'Tem fogo?'.
Rapidamente tirei o isqueiro do bolso e o emprestei, tinha parado de fumar há dois meses mas ainda não perdera o hábito de carregar-lo sempre comigo. Ele acendeu e soltou uma baforada no meu rosto, quando percebeu minha cara de desgosto apenas virou-se pro outro lado.
"Você não é muito de falar, né estranho?!", virou-se pra mim com aquele mesmo sorriso, eu retruquei, meio indignado: "É louco?! Como assim!?", ele apenas estendeu a mão com o isqueiro e me devolveu. Continuou a fumar olhando para algum ponto bem distante no teto da rodoviária.
Sem voltar o olhar disse: "Qual foi a ultima vez que morreu?" - "Sim, você é louco.".
Aí ele começou sua história, que eu, apesar de achar absurda, ouvi sem interrompê-lo um instante sequer. Ele falava sobre sonhos, sonhos em que a gente morre. Nesses sonhos, disse ele, temos os últimos resquícios de nossa vida passada, e quando acordamos, ou quando 'terminamos de morrer' na outra vida, passamos para esse universo e ganhamos de presente uma vida inteira a qual acreditamos ter vivido, mas na verdade ela foi criada naquele exato momento, tudo para que o universo continue tranquilamente seu ritmo.
Nesse instante me lembrei que, no dia eu que eu acordei com a casa em chamas, eu tinha sonhado exatamente com isso: eu era um terrorista que explodia as bombas em meu próprio peito em um lugar parecidíssimo com o oriente médio. Percebi que eu estava com a respiração presa e dei um suspiro lento.
"Então um dia eu descobri um chá, uma receita encontrada em velhos livros de magia, que me protegia contra o esquecimento, que segundo o próprio livro era uma dádiva para que não enlouquecêssemos vivendo na eternidade. Esse liquido era portanto o tão sonhado elixir da vida, da eternidade, e poderia nascer e morrer quantas vezes quisesse, poderia ser uma infinidade de pessoas diferentes e em épocas diferentes. Ele dizia já ter tido vinte vidas mais ou menos.
Eu, claro, pensei: "Ele é um louco.", mas fica a curiosidade. Ele parecia ter muita segurança do que falava, ele era realmente seguro. Percebia-se que era uma pessoa experiente, era inteligente e tinha boa conversa, alguem realmente curioso.
Eu titubeei com a pequena xícara na mão que ele me dera, nela ele derramou o chá que trazia em uma garrafinha térmica a tiracolo. Enquanto eu fitava meu reflexo no chá ele me contava o porquê de eu ser o escolhido para saber daquela verdade.
Segundo ele, nos encontramos na sua primeira vida - a que ele se lembrava como sendo a primeira - e fomos grandes amigos, eu morrera assassinado e, depois de ter descoberto aquele elixir, ele me procurara por anos. É que por mais que nascêssemos de novo, nossas aparências quase não mudavam. Então ele tinha visto minha foto no jornal, descobrira que eu era um cronista, mas quando foi me procurar no endereço que lhe deram no jornal, achou apenas uma casa queimada, mas pra sua sorte seus instintos estavam corretos e em 36 horas de espera na rodoviária eu apareci.
Bebi. Era até gostoso. Senti um estranho formigamento e uma sensação de que eu tinha ficado mais leve, mas passou rapidamente. Ele levantou-se, esperando que eu levantasse também com os braços semi-abertos, no qual ele envolveu-me num abraço.
Conversamos muito até a hora de meu ônibus chegar, ele me contou de suas experiências passadas, mas ficava quase sempre contando sobre nossa amizade e sobre o que fazia em sua atual vida. Eu também lhe contei o que eu fazia, contei que além de escrever para um jornal eu estava escrevendo um livro de crônicas e que até minha casa pegar fogo, eu estava juntando dinheiro pra comprar uma moto.
Sorrindo, nos despedimos quando finalmente chegou a hora de eu ir pra casa. Prometemos que nos veríamos de novo, e então me virei pra ir embora. Ruminei aquilo por todo o caminho, e quando cheguei no sítio onde moravam meus pais, eu passava dias sentado na varanda tentando me concentrar pra escrever algo, mas apenas aquela historia em vinha na cabeça.
Então sorri. Tinha entendido tudo, agora tudo estava bem claro. Passei os meses seguintes em claro escrevendo sem parar, toda a historia, tudo que me lembrava e tudo que tinha sido contado, meus lápis corria incessante até que o ultimo ponto fora colocado.
Escrevi uma carta simples de despedida, sem nada explicar, apenas com o desejo de que meu livro fosse publicado, enterrei na beira da estrada algumas coisas que eu tinha mais apego e um pouco de dinheiro, depois eu me tranquei no quarto e dei dois tiros na cabeça.